segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Cotas!?

AÇÃO AFIRMATIVA:
HISTÓRIA E DEBATES NO BRASIL
SABRINA MOEHLECKE
Doutoranda da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo

RESUMO
Este artigo tem por objetivo oferecer uma introdução à recente discussão sobre políticas de ação afirmativa e sistemas de cotas no Brasil. De onde veio a expressão, quais os locais em que as cotas foram implementadas, as formas assumidas, os grupos beneficiados e diferentes definições dadas são alguns dos aspectos abordados. Num segundo momento, elaboramos um panorama do desenvolvimento dessas políticas, observando sua história, características que têm adquirido e experiências colocadas em prática. Por último, discutimos alguns pontos polêmicos sobre elas, como sua legalidade e abrangência. A ação afirmativa implica uma discriminação ao avesso ou a garantia de direitos? É esta a melhor solução? Políticas sociais mais amplas não seriam mais eficazes? O que está em jogo nesse debate?

AÇÃO SOCIAL. POLÍTICA SOCIAL. DISCRIMINAÇÃO SOCIAL. IGUALDADE DE OPORTUNIDADES.

ABSTRACT

AFFIRMATIVE ACTION: HISTORY AND DEBATES IN BRAZIL. The purpose of this article is to provide an introduction to the recent discussion on affirmative action policies and quota systems in Brazil. It addresses aspects such as where the expression affirmative action came from, where the quota system was implemented, their variors forms, the groups that benefited from them and different definitions applied to them. Subsequently, it offers on a panorama of affirmative action policies. development, noting their history, the characteristics they have acquired and experiences put into practice. Finally, it discusses some related controversial issues, such as their legality and scope. Does affirmative action imply reverse discrimination or effectivelly assure rights? Is it the best solution? Would not broader social policies be more effective? What is at stake in this debate?
SOCIAL ACTION . SOCIAL POLICIES . SOCIAL DISCRIMINATION. EQUAL OPPORTUNITIES.













A redemocratização no Brasil é ainda um processo recente e permeado por diversas lacunas não resolvidas. Uma delas refere-se à permanência de condições adscritas, isto é, características não mutáveis inerentes a um indivíduo, como cor e sexo, a influir na definição das oportunidades de ingresso no mercado de trabalho, progressão na carreira, desempenho educacional, acesso ao ensino superior, participação na vida política.
Dados sobre discriminação e desigualdades nessas diferentes áreas têm sido sistematicamente divulgados nos últimos anos, nacional e internacionalmente, e a questão não é mais novidade. Contudo, no campo prático, são várias as controvérsias acerca de quais seriam as melhores soluções, já que essa situação tem-se mostrado inalterada por décadas.
Uma das propostas que surgiram como resposta ao problema foram as políticas de ação afirmativa, também designadas. Política de cotas, .reserva de vagas, ação compensatória, que veiculam tema e experiência relativamente novos no debate e .agenda pública brasileira.. Entendemos que, antes de assumir uma posição favorável ou contrária a essas políticas, seria importante conhecer e entender melhor o que são, sua história e a direção assumida por algumas das polêmicas que têm suscitado. Uma breve introdução e revisão sobre o assunto, longe da pretensão de esgotá-lo, é a proposta deste artigo.

O QUE É AÇÃO AFIRMATIVA?
O termo ação afirmativa chega ao Brasil carregado de uma diversidade de sentidos, o que em grande parte reflete os debates e experiências históricas dos países em que foram desenvolvidas.
A expressão tem origem nos Estados Unidos, local que ainda hoje se constitui como importante referência no assunto. Nos anos 60, os norte-americanos viviam um momento de reivindicações democráticas internas, expressas principalmente no movimento pelos direitos civis, cuja bandeira central era a extensão da igualdade de oportunidades a todos. No período, começam a ser eliminadas as leis segregacionistas vigentes no país, e o movimento negro surge como uma das principais forças atuantes, com lideranças de projeção nacional, apoiado por liberais e progressistas brancos, unidos numa ampla defesa de direitos. É nesse contexto que se desenvolve a idéia de uma ação afirmativa, exigindo que o Estado, para além de garantir leis anti-segregacionistas, viesse também a assumir uma postura ativa para a melhoria das condições da população negra. Os Estados Unidos completam quase quarenta anos de experiências, o que oferece boa oportunidade para uma análise de longo prazo do desenvolvimento e impacto dessa política.
Mas a ação afirmativa não ficou restrita aos Estados Unidos. Experiências semelhantes ocorreram em vários países da Europa Ocidental, na Índia, Malásia, Austrália, Canadá, Nigéria, África do Sul, Argentina, Cuba, dentre outros. Na Europa, as primeiras orientações nessa direção foram elaboradas em 1976, utilizando-se freqüentemente a expressão. Ação ou discriminação positiva. Em 1982, a discriminação positiva. Foi inserida no primeiro. Programa de Ação para a Igualdade de Oportunidades. da Comunidade Econômica Européia (Centro Feminista de Estudos e Assessoria, 1995, Estudos Feministas, 1996).
Nesses diferentes contextos, a ação afirmativa assumiu formas como: ações voluntárias, de caráter obrigatório, ou uma estratégia mista; programas governamentais ou privados; leis e orientações a partir de decisões jurídicas ou agências de fomento e regulação.
Seu público-alvo variou de acordo com as situações existentes e abrangeu grupos como minorias étnicas, raciais, e mulheres. As principais áreas contempladas são o mercado de trabalho, com a contratação, qualificação e promoção de funcionários; o sistema educacional, especialmente o ensino superior; e a representação política.
Além desses aspectos, a ação afirmativa também envolveu práticas que assumiram desenhos diferentes. O mais conhecido é o sistema de cotas, que consiste em estabelecer um determinado número ou percentual a ser ocupado em área específica por grupo(s) definido(s), o que pode ocorrer de maneira proporcional ou não, e de forma mais ou menos flexível. Existem ainda as taxas e metas, que seriam basicamente um parâmetro estabelecido para a mensuração de progressos obtidos em relação aos objetivos propostos, e os cronogramas, como etapas a serem observadas em um planejamento em médio prazo.
Estabelecidos esses pontos iniciais, podemos tratar das definições propriamente ditas do que seria a ação afirmativa. Barbara Bergmann entende, de maneira ampla, que: Ação afirmativa é planejar e atuar no sentido de promover a representação de certos tipos de pessoas. Aquelas pertencentes a grupos que têm sido subordinados ou excluídos . em determinados empregos ou escolas. É uma companhia de seguros tomando decisões para romper com sua tradição de promover a posições executivas unicamente homens brancos. É a comissão de admissão da Universidade da Califórnia em Berkeley buscando elevar o número de negros nas classes iniciais [...].
Ações Afirmativas pode ser um programa formal e escrito, um plano envolvendo múltiplas partes e com funcionários dele encarregados, ou pode ser a atividade de um empresário que consultou sua consciência e decidiu fazer as coisas de uma maneira diferente. (1996, p. 7)
Segundo os anais do documento. Perspectivas internacionais em ação afirmativa, resultado de um encontro de pesquisadores, ocorrido em agosto de 1982, no Centro de Estudos e Conferências de Bellagio, na Itália, a ação afirmativa pode ser uma preferência especial em relação a membros de um grupo definido por raça, cor, religião, língua ou sexo, com o propósito de assegurar acesso a poder, prestígio, riqueza (Contins, Sant.Ana, 1996, p.209).
Essas definições introduzem a idéia da necessidade de promover a representação de grupos inferiorizados na sociedade e conferir-lhes uma preferência afim de assegurar seu acesso a determinados bens, econômicos ou não. Mas por que deveríamos agir dessa forma, o que justifica essa política?
Antonio Sergio Guimarães (1997) apresenta uma definição da ação afirmativa baseado em seu fundamento jurídico e normativo. A convicção que se estabelece na Filosofia do Direito, de que tratar pessoas de fato desiguais como iguais, somente amplia a desigualdade inicial entre elas, expressa uma crítica ao formalismo legal e também tem fundamentado políticas de ação afirmativa. Estas consistiriam em. Promover privilégios de acesso a meios fundamentais. Educação e emprego, principalmente a minorias étnicas, raciais ou sexuais que, de outro modo, estariam deles excluídas, total ou parcialmente.. (1997, p.233). Além disso, a ação afirmativa estaria ligada a sociedades democráticas, que tenham no mérito individual e na igualdade de oportunidades seus principais valores. Desse modo, ela surge .como aprimoramento jurídico de uma sociedade cujas normas e mores pautam-se pelo princípio da igualdade de oportunidades na competição entre indivíduos livres, justificando-se a desigualdade de tratamento no acesso aos bens e aos meios apenas como forma de restituir tal igualdade, devendo, por isso, tal ação ter caráter temporário, dentro de um âmbito e escopo restrito (1997, p.233). Essa definição sintetiza o que há de semelhante nas várias experiências de ação afirmativa, qual seja, a idéia de restituição de uma igualdade que foi rompida ou que nunca existiu.
Na explicitação desse objetivo, também se diferencia de práticas discriminatórias raciais, étnicas ou sexuais, que têm como fim estabelecer uma situação de desigualdade entre os grupos.
No material desenvolvido pelo Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra no Brasil encontramos essa distinção, em que a ação afirmativa é definida como uma medida que tem como objetivo: eliminar desigualdades historicamente acumuladas, garantindo a igualdade de oportunidades e tratamento, bem como compensar perdas provocadas pela discriminação e marginalização, decorrentes de motivos raciais, étnicos, religiosos, de gênero e outros. (Santos, 1999, p.25)
William L. Taylor, participante da Conferência de Bellagio, esforça-se por diferenciar o conceito de ação afirmativa de outros conceitos, como reparação e redistribuição.
O primeiro, necessariamente, inclui como beneficiários de seus programas todos os membros do grupo prejudicado. O segundo, por sua vez, pressupõe como critério suficiente (ou mesmo exclusivo) a carência econômica ou socioeconômica dos membros do grupo em questão, independentemente dos motivos dessa carência. A ação afirmativa diferenciar-se-ia, no primeiro caso, por que. Em programas de ação afirmativa, o pertencimento a um determinado grupo não é suficiente para que alguém seja beneficiado; outros critérios iniciais de mérito devem ser satisfeitos para que alguém seja qualificado para empregos ou posições. Já em relação à redistribuição, ela distingue-se por configurar-se em medida de justiça, a qual se constitui em argumento legal para seu pleito, tal como a jurisprudência norte-americana a consagrou. (Contins, Sant.Ana, 1996, p.210)

E a ação afirmativa teria:
Como função específica a promoção de oportunidades iguais para pessoas vitimadas por discriminação. Seu objetivo é, portanto, o de fazer com que os beneficiados possam vir a competir efetivamente por serviços educacionais e por posições no mercado de trabalho. (Contins, Sant.Ana, 1996, p.210) De acordo com essa distinção, não basta ser membro de um grupo discriminado; é necessário que, além disso, o indivíduo possua determinadas qualificações.
Esse é um importante aspecto da ação afirmativa e tem suscitado algumas controvérsias que discutiremos posteriormente. Outro ponto que Taylor estabelece é que a ação afirmativa não é especificamente uma política compensatória redistributiva, pois ela exige que a carência socioeconômica dos indivíduos seja identificada como conseqüência da discriminação racial, étnica ou sexual, seu problema central. Mas como determinar essa relação (entre discriminação e desigualdades sociais de alguns grupos) diante da complexidade das relações sociais e da permanência histórica de algumas estruturas na sociedade?
O estudo histórico de James Jones Jr. (1993) traz uma contribuição à questão da relação entre discriminação e desigualdades sociais, ao separar o que chama de conceito antigo e moderno de ação afirmativa. No primeiro, ela seria uma reparação pós-sentença ou parte do processo de sentença. A reparação somente passaria a existir depois que as partes tivessem julgado o problema perante os tribunais e que admitissem que um erro foi cometido. Esse poder de reparação envolveria dois aspectos: a) o poder dos tribunais para garantir a reparação daqueles identificados como vítimas da conduta do acusado; b) o poder e o dever dos tribunais de emitir tais ordens para assegurar a conformidade com a lei no futuro. Nesse sentido, é uma reparação prospectiva, baseada na identificação de uma violação da lei e dos seus culpados e vítimas.
O segundo conceito, que Jones Jr. entende como conceito moderno, teria como eixo o Plano Revisado da Philadelphia, utilizado nos Estados Unidos em 1969.
Nele existe a intenção de remediar uma situação indesejável socialmente, porém a questão não é formulada em termos da identificação individual de culpados e vítimas; ela relaciona-se, antes, à conformação de um problema social existente. Para que os Estados possam adotar programas de ação afirmativa não é necessário que as mesmas impliquem o próprio Estado ou uma instituição local na discriminação. É suficiente demonstrar que a instituição teve uma participação passiva num sistema de exclusão racial praticado por outros elementos da economia.
Como observa Jones Jr, ambas estão dirigidas para remediar uma situação considerada socialmente indesejável. Na primeira, a situação foi considerada pela corte uma violação da lei existente.
Na segunda, uma agência legislativa ou executiva determina que algum problema merece uma atenção especial. (1993, p.349)
Entretanto, Jones Jr. omite uma diferença fundamental entre os dois conceitos, antigo e moderno, importante de ressaltarmos:
No primeiro caso, existe uma pessoa que foi vítima de um tratamento discriminatório, comprovado em Corte; no segundo, existem pessoas que têm grande probabilidade estatística de virem a ser discriminadas, por pertencerem a um grupo. No primeiro caso, a ação é reparatória; no segundo, é preventiva, ou seja, procura evitar que indivíduos de certos grupos de risco tenham seus direitos alienados. (Guimarães, 1999, p.154)
Nessa distinção, a segunda ação prescinde de um julgamento individual de um caso específico como, por exemplo, de discriminação racial. Ela poderia ser uma ação preventiva, adotada por instituições, baseada numa análise que indique uma situação social desfavorável de determinado grupo ao longo do tempo.
Bergmann (1996) introduz outra dimensão possível dessas políticas. A diversidade, tema que tem recebido especial atenção na área educacional. De acordo com a autora, existiriam três idéias por trás da ação afirmativa. As duas primeiras seriam a necessidade de combater sistematicamente a discriminação existente em certos espaços na sociedade, e de reduzir a desigualdade que atinge certos grupos, como àquela marcada pela raça ou gênero. Uma terceira proposta envolveria a busca da integração dos diferentes grupos sociais existentes por meio da valorização da diversidade cultural que formariam. Essa idéia tenta conferir uma identidade positiva àqueles que antes eram definidos pela inferiorização e supõe que a convivência entre pessoas diferentes ajudaria a prevenir futuras visões preconceituosas e práticas discriminatórias.
As posições apresentadas procuraram introduzir os principais aspectos envolvidos e em debate na definição de políticas de ação afirmativa. Num esforço de síntese e incorporando as diferentes contribuições, podemos falar em ação afirmativa como uma ação reparatória/compensatória e/ou preventiva, que busca corrigir uma situação de discriminação e desigualdade infringida a certos grupos no passado, presente ou futuro, através da valorização social, econômica, política e/ou cultural desses grupos, durante um período limitado. A ênfase em um ou mais desses aspectos dependerá do grupo visado e do contexto histórico e social.


*Artigo disponível: Google acadêmico: S Moehlecke - Cadernos de Pesquisa, 2002 - SciELO Brasil

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